terça-feira, 3 de maio de 2011

Claude Levi-Strauss e a MOQ

Claude Levi-Strauss




Foi um dos raros antropólogos/filósofos à entenderem intimamente a realidade dos povos indígenas e a filosofia budista.

Não se considerava um típico estudioso desses povos como a visão acadêmica propôe, nem achava a civilização industrial como superior.

Robert Pirsig cita-o brevemente nas páginas de Lila, em um raro elogio pelo seu diferencial.

"Muitos antropólogos pareciam ser gente inteligente, interessada e humana, mas estavam todos operando dentro da muralha do sistema imunológico da antropologia. Podia ver que alguns antropólogos estavam lutando para sair para fora da muralha, mas dentro da muralha não havia ferramental intelectual que lhes permitisse sair.
À medida que refletia mais sobre a muralha, constatava que todos os caminhos dentro dela pareciam levar a Franz Boas que, em 1899, tinha se tornado o primeiro professor de antropologia na Universidade de Columbia, e tinha de tal forma dominado o campo que quase tudo que até hoje se produz na América em termos de antropologia jaz à sua sombra. Alunos que estudaram sob seu domínio intelectual tornaram-se famosos: Margaret Mead, Ruth Benedict, Robert Lowie, Edward Sapir, Alfred Kroeber, Paul Radin e outros. Produziram uma florescente literatura antropológica, tão grande e tão rica que seu trabalho às vezes passa equivocadamente por tudo que há na antropologia cultural. A chave para penetrar na muralha estava em reexaminar as atitudes filosóficas do próprio Boas.
A formação de Boas era em matemática e física, na Alemanha do século 19. Sua influência residia não no estabelecimento de uma determinada teoria particular em antropologia, mas no estabelecimento de um método de investigação antropológica. Esse método seguia os princípios da ciência “rígida” em que tinha sido treinado.
Margaret Mead dizia: “Ele temia a generalização prematura como se fosse a peste bubônica e continuamente nos advertia contra ela.” A generalização deveria se basear nos fatos e somente nos fatos.
“É indubitável que a ciência era sua religião”, dizia Kroeber. “Afirmava que suas convicções iniciais eram materialistas. A ciência não poderia tolerar nada ‘subjetivo’; os julgamentos de valor — e por contágio até os valores vistos enquanto fenômeno — tinham de ser rigorosamente excluídos.”
Numa tira com o cabeçalho “Goldschmidt”, Phaedrus tinha copiado a seguinte afirmativa: “O empirismo, essa preocupação com o fato, com o detalhe, com a manutenção do registro, Boas transmitiu a seus alunos e à antropologia. É um elemento tão primordial no pensamento antropológico, que a expressão ‘poltrona do antropólogo’ é um opróbrio, e duas gerações depois ainda insistimos no trabalho de campo como um requisito para qualquer reivindicação de competência antropológica.”
Quando Phaedrus terminou de ler a respeito de Boas, estava confiante em que havia identificado a fonte do sistema imunológico contra o qual tinha que lutar, o mesmo sistema imunológico que havia rejeitado as posições de Dusenberry. Era a ciência do século 19 e sua insistência em que a ciência é o único método para se determinar o que é verdadeiro e o que não passa de um conjunto de crenças. Surgiram muitas outras escolas em antropologia, além da de Boas, mas Phaedrus não conseguiu encontrar nenhuma que se opusesse a ele em termos de objetividade científica.
À medida que continuava a ler, Phaedrus percebia cada vez mais os efeitos negativos que essa aplicação da ciência vitoriana tinha tido sobre a antropologia cultural. O que tinha acontecido é que Boas, ao sobrepor os critérios das ciências físicas à antropologia cultural, tinha demonstrado não só que as teorias dos antropólogos de poltrona não tinham suporte científico, mas que qualquer teoria antropológica não tinha suporte científico, já que não podia ser provada pelos rigorosos métodos que Boas tinha tomado emprestado do campo da física. Boas parecia pensar que um dia uma teoria naqueles moldes emergiria dos fatos, mas já tinha se passado um século desde que Boas levantou essa expectativa, e até hoje nenhuma tinha emergido. Phaedrus estava convencido de que jamais emergiria. Os padrões de uma cultura não funcionam em conformidade com as leis da física. Como vamos provar, em termos das leis da física, que existe uma determinada atitude dentro de uma determinada cultura? O que é uma atitude, em termos das leis de interação molecular? O que é um valor cultural? Como vamos demonstrar cientificamente que uma determinada cultura tem determinados valores? Não dá.
A ciência não tem valores. Não oficialmente. O campo inteiro da antropologia estava de tal forma regido por cartas marcadas que ninguém podia provar nada de uma natureza geral sobre ninguém. O que quer que se dissesse, podia ser derrubado a qualquer hora por qualquer idiota, a pretexto de que não era científico.
A teoria que existia era marcada por ásperas discussões sobre diferenças que nada tinham de antropológicas. Quase nunca eram discussões sobre acuidade de observação. Eram discussões sobre significados abstratos. Dava a impressão de que tão logo alguma pessoa dissesse algo teórico era o sinal para o início de um enorme entrevero sobre diferenças que não poderiam ser solucionadas por meio de informações antropológicas.
O campo inteiro se parecia com uma rodovia cheia de motoristas enraivecidos, se xingando e se acusando mutuamente de não saber dirigir, quando o verdadeiro problema estava na estrada em si. A estrada tinha sido aberta como o estudo científico do homem, buscando equiparar-se às ciências físicas. O problema é que o homem não se presta a esse tipo de estudo científico objetivo. Presume-se que o objeto do estudo científico fique quieto. Presume-se que siga as leis de causa e efeito de tal forma que uma dada causa terá sempre um dado efeito, e assim indefinidamente. O homem não faz assim. Nem mesmo os selvagens.
O resultado foi o caos teórico.
Phaedrus gostava de uma descrição que tinha lido no livro Teoria em antropologia, de Robert Manners e David Kaplan, da Universidade de Brandeis. “Espalhados pela literatura antropológica”, escreveram eles, “há um sem-número de palpites, insights, hipóteses e generalizações. Tudo indica que vão permanecer espalhados, esboçados, desconectados uns dos outros, razão pela qual freqüentemente são perdidos ou esquecidos. Há uma tendência, a cada nova geração de antropólogos, de começar tudo de novo.”
“A construção de teorias na antropologia cultural fica parecendo a técnica da queimada”, diziam eles, “em que os nativos retornam esporadicamente a antigos campos de cultivo que foram recobertos pelo mato e metem a foice e queimam e plantam durante alguns anos.”
Phaedrus podia ver a foice e o fogo em todo canto que olhava. Alguns antropólogos diziam que a cultura era a essência da antropologia. Outros diziam que essa coisa chamada cultura não existe. Uns diziam que a história é tudo, outros que a estrutura é tudo. Outros ainda diziam que tudo é função. Outros mais, que tudo são valores. Alguns, na trilha da pureza científica de Boas, diziam que definitivamente não há valores.
Essa idéia de que a antropologia não tem valores ficou gravada na mente de Phaedrus como “o lugar”. Ali era onde se podia abrir uma brecha na muralha. Não há valores, hem? Não há Qualidade, não é? Era ali que ia focalizar o ponto em que começaria o ataque.
Evidentemente, o que muitos estavam tentando fazer era escapar dessas discussões metafísicas condenando todo tipo de teoria e se recusando a falar, sequer, de coisas teóricas redutivas, como o que os selvagens fazem, de forma geral. Restringiam-se ao que o seu selvagem em particular costumava fazer às quartas-feiras. Afinal, era seguro, cientificamente — e cientificamente inútil.
O antropólogo Marshall Sahlins escreveu: “O próprio termo ‘universal’ tem uma conotação negativa nesse campo, porque sugere a busca de uma ampla generalização que foi virtualmente declarada não-científica pela antropologia americana acadêmica e particularizante do século 20.”
Phaedrus imaginava que os antropólogos julgavam ter mantido o campo “cientificamente puro” com esse método, mas a pureza era tão constritiva que simplesmente tinha estrangulado o campo. Se não podemos estabelecer generalizações a partir de dados, de que nos servem eles? Uma ciência que não generaliza não é uma ciência. Imagine alguém dizendo a Einstein: — Olha, você não pode dizer que E = mc2. É genérico demais, redutivo demais. Queremos apenas os fatos da física, e não toda essa teoria bombástica. — Besteira. No entanto, é o que estavam dizendo em antropologia.
Dados sem generalização são balela. E à medida que Phaedrus prosseguia, parecia ser esse o status do que estava lendo. Enchiam-se prateleiras e prateleiras com volumes e volumes poeirentos sobre este e aquele selvagem mas, até onde se podia ver, a antropologia, a “ciência do homem”, não tinha tido praticamente nenhum efeito diretivo nas atividades humanas deste século científico.
Ciência de meia-tigela. Tentavam se erguer pelos cordões das botas. Não é possível que a caixa A contenha a caixa B que por seu turno contém a caixa A. Isso é tramóia. Contudo, eis uma “ciência” que contém o “homem” que contém a “ciência” que contém o “homem” que contém a “ciência”, e por aí indefinidamente.

(LILA - págs. 60 até 63).

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